quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O fio da vida

- para Satie e sua batyan

Outro dia vi uma colcha de retalhos. Cada pequeno pedaço de tecido costurado parecia encaixar-se perfeitamente em seu lugar, mesmo que os motivos das estampas nada tivessem a ver uns com os outros. Achei aquilo muito bonito e, ao perceber minha admiração, a dona da colcha, minha amiga, disse-me que ela havia sido feita pela sua avó. Tenho a impressão de que os povos de origem oriental, como é o caso da família da minha amiga, tem profundo respeito pelos mais velhos, valorizando o que eles dizem como mandamentos de grande sabedoria. Todos esse fatos me encantaram ainda mais e eu passei a refletir sobre as lições de sabedoria contidas na colcha de retalhos.
Imagino uma senhora, com modos simples e feições amáveis. Ela está sentada defronte a um amontoado de pedaços de pano. Seu objetivo é uní-los, um a um, formando um conjunto harmonioso e belo. Nesse momento não há espaço para reflexões em demasia, pois isso acabaria com a leveza e a inocência próprias do acaso. Assim, ela simplesmente mede os comprimentos de alguns retalhos e logo inicia sua obra. Ligando os pequenos pedaços por uma linha contínua, suas mãos hábeis dão forma ao novo a partir daquilo que há pouco eram sobras. Ela já conhece os segredos dos tecidos e, muito embora não saiba o resultado final, ela sorri satisfeita com seu trabalho.
A vida não está pronta diante de nós. Estamos nos deparando constantemente com grandes tapeçarias. Não podemos revestir nossas paredes com elas, mas ainda assim carregaremos parte delas conosco. Nosso grande desafio, assim como o daquela senhora, é unir essas partes, esses retalhos, costurando-os através de uma linha forte que passe por todos eles. Recordei-me das Moiras, as três irmãs mitológicas que teciam os fios do destino dos homens e deuses. Tal era o poder delas que até mesmo Zeus, o senhor do Olímpo, estava submetido à sua obra. Por maior que seja nosso domínio sobre a vida, podem ser entremeados motivos que não gostaríamos que estivessem lá, mas não poderemos rasgá-los ou arrancá-los da colcha, pois o trabalho seria muito degradado.
Retalhos nada mais são que sobras de pano, são as lembranças daquilo que vivemos e que, seja ou não por nossa espontânea vontade, acabamos por incorporar à nossa vida. A colcha, depois de pronta, tem o propósito de ser acolhedora, envolvente, de acalentar nas horas frias ou proteger da aspreza do mundo a nossa volta, se ela não cumpre esse papel, precisamos ter coragem deixá-la de lado e aguentar o frio, até que tenhamos costurado uma nova peça.
Para mim, o mais interessante na colcha é justamente a consequência de não se pensar demais para costurá-la: não há grandes planos. Sabe-se mais ou menos onde se quer chegar, mas não fazemos idéia de como será o conjunto depois de pronto. A senhora que tece a colcha deve ser mesmo sábia, pois continua seu trabalho, sem ligar para essas coisas, sem se preocupar com a complexidade das cores e motivos, ela só tece. Então, quando a questionamos porque sorri enquanto costura, ela permanece em silêncio, calma, olhando para seu trabalho. Vagarosamente ela repousa as mãos sobre o colo, deixando, por alguns instantes, a linha descansar. Como se despertasse, ela ergue os olhos para seu interlocutor, fita-o com ternura, e responde, quase como um sussurro, mas espontânea e alegre: “É que me lembrei de uma coisa engraçada...”

Max
 

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