domingo, 29 de maio de 2011

Confissões da madrugada

Nesse meu mundo tão fantástico quanto o de Alice, tudo pode surpreender, causar medo ou mesmo dor. Será loucura olhar-se no espelho e, com surpresa, reconhecer alguém que não se conhecia? Uma “insônia breve”, nessa madrugada, permitiu que eu me lembrasse de um gato branco que vi outro dia. Alice seguiu um coelho branco e encontrou o maravilhoso, talvez tenha sido esse gato a me guiar pelo escuro da mente...
Sem contato com ele, observando seus movimentos sutis, sua delicadeza e sua leveza, só pude supor que se tratasse de um bichano doméstico, frágil e esguio. Enquanto eu o observava nessa madrugada, ele refez a pergunta que já me tomara o sono: por que você ajuda? Depois de algum tempo, encarei fixamente aqueles olhos que eram meus e confessei porque eu ajudo, aceitei minha verdade. Toda aceitação implica algum tipo de dor. O preconceito nos faz supor bobagens: esqueci o perigo de provocar um gato. Mais que depressa, o gato branco, eu, arranhou meu rosto incólume com unhas afiadas. Aprendi que a dor é o orgulho ferido.
Nas últimas semanas fui privilegiado por encontrar pessoas que transformaram momentos ordinários em extraordinários, fossem os mais amados amigos e suas declarações, puras e sinceras, de amor, fossem os “estranhos” do dia a dia. Reconheci de alguns dos quais só esperava frieza, o carinho de quem se preocupa e, da mesma forma, reconheci, de alguns dos quais só se esperava ternura, a indiferença de quem não está nem aí. Reconheci amigos onde antes não havia mais que estranhos e, em contrapartida, reconheci estranhos onde antes havia amigos.
Acredito que um dos maiores segredos de uma vida incrível é estar disposto a tentar. Estou tentando. Quero encontrar o diálogo onde sempre houve o silêncio, ser amigo de algum velhinho sábio escondido nos cantos de um laboratório e me apaixonar pelo perfume de mulheres de lua. Se errar, espero ter sempre em mente que não é sempre que se acerta de primeira. Talvez, assim como para mim, parte do significado da palavra “reconhecer” costume passar despercebido para todos. Geralmente, leio essa palavra interpretando seu sentido como “encontrar” ao invés de “conhecer novamente”.
O dia chega devagar enquanto o gato sorri orgulhosamente encarando minha face ferida. Lembro do dito “à noite, todo gato é pardo” e, retribuindo maliciosamente o sorriso, reconheço, com meus olhos machucados, que ele não é tão branco assim...

Max 


domingo, 15 de maio de 2011

Os chefes falcões e seus pratos de ratazanas ao molho de sangue


Um instante é único, por isso cada instante tem valor inestimável e beleza indiscutível. Quantos ratos há no mundo? Centenas de milhões, bilhões, talvez trilhões... Não faço idéia, mas gosto de supor que existe ao menos um para cada instante de tempo. Escondidos sob as ruas sujas, alimentando-se da fartura rejeitada pelo mesmo mundo que os rejeita, totalmente fugidios, os ratos correm, a passos curtos, por longas distâncias escusas. O mundo não deseja mais lidar com ratos, mas eles continuam a se multiplicar, na mesma proporção dos esforços para erradicá-los.
No alto voa o falcão. Sempre o admirei por sua visão aguçada, sua imponência, seu vôo equilibrado, livre e veloz, entretanto, ainda há pouco, eu desconsiderava a relação dele com suas prezas. Habilmente ele as caça, agarra e consome suas vidas alimentando-se delas. Ignorar isso é desprezar parte essencial do que essa ave também representa: firmeza, força e poder.
Mesmo em cidades ou campos infestados de ratazanas é necessária astúcia para que o falcão as apanhe. Gosto de me questionar sobre quantos banquetes ele perderia, quantas ratazanas fartas ele deixaria escapar, quanta fome e quanto sofrimento ele infringiria a si mesmo se desprezasse sua natureza de senhor dos ares. Sair do ninho, deixar o aconchego, o conforto e a segurança pela busca daquilo que é melhor, mesmo que longínquo e desconhecido. No fim, o desapego é fruto da coragem.
Então o falcão destemido apanha um belo prato de ratazanas. Ele dividirá sua conquista? Há escolhas a fazer, há que decidir quem é verdadeiramente merecedor das recompensas pelos esforços do vôo, da caça e do molho, de próprio sangue, que rega o banquete. A maioria dos outros não é. Talvez por isso os falcões, em geral, sejam territorialistas e defendam com tanto afinco aquilo que lhes é caro, quer sejam os domínios que conquistaram, quer sejam os seletos membros de seu ninho.
Receio ter de decepcionar alguns e esclarecer que a história de que as primas dos falcões, as águias, passam por um processo doloroso de renovação para poderem sobreviver não passa de uma lenda, bonita, mas, ainda assim, somente uma lenda. A realidade é definitivamente mais difícil e, talvez por isso, mais intensa e mais bela. As aves de rapina não renovam sua existência, as águias e os falcões vivem o tempo que a natureza lhes permite viver com suas asas e seus bicos definhando na medida em que passa o tempo. Cada rato, gordo ou magro, suculento ou repugnante, deve ser saboreado como único que é, pois nunca se sabe se o falcão poderá fazê-lo por ainda mais um dia.
Creio que na velhice pouco importará o sabor dos ratos ou mesmo a satisfação momentânea dos estômagos cheios. Acredito, sinceramente, que os falcões mais felizes serão aqueles que poderão recordar-se do vento na face durante os vôos mais rápidos e mais altos, da sensação de firmeza das garras que capturam as prezas, da dor de cada derrota mesclada ao prazer de cada caçada bem sucedida.
Parece bobagem divagar sobre a felicidade dos falcões, pois eles são apenas aves e é pouco provável que possam se alegrar por terem sido senhores em suas vidas, mas nós, que somos homens, podemos. O mundo seria mais fascinante se houvesse também um falcão para cada homem...

Max