sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Prato do dia: salada de borboletas

Campinas, 23 de outubro de 2008.

Bom dia! Espero que você esteja tendo um dia tão bom quanto o meu! Que dia gostoso! Faz sol, o calor está grande, mas até agradável. Eu estou tranqüilo, fiz prova na quarta-feira e a tensão rotineira passou, ao menos momentaneamente.

Já faz tempo que eu quero te escrever pra falar de borboletas, mas agora a pouco é que eu percebi que não adianta ver a planta, a borboleta, sentir a brisa, todas essas coisas inspiradoras e depois me fechar numa sala isolada da natureza, com um ar condicionado construindo todo o clima e tentar escrever, isso seria artificial demais. Compreendi que até poderia escrever sobre belezas naquela sala, mas só poderia transmitir a sensação correta se estivesse num lugar como o que estou agora. Eu estou em meio às árvores, às plantas, aos pássaros, há uma brisinha leve que de vez em quando vira um vento gostoso batendo no rosto, belas pessoas passando, pra lá e pra cá, seguindo seus caminhos.

Tenho olhado bastante para as borboletas. Desde um almoço essa semana quando uma ficou me rondando. Será que ainda vai demorar muito pra nós sermos como borboletas? Vindo de mim, visto como a pessoa mais calma do mundo, pode até ser engraçado, mas eu acho que passamos rápido demais pela vida, precisávamos ir mais devagar. Daí você ri e diz “Max, se você for mais devagar você pára!”, só que eu queria que você visse de outra forma, abstraindo completamente a minha condição de físico ouso dizer que esse devagar não tem absolutamente nada a ver com tempo e muito menos com velocidade, tem a ver sim com sabor.

Os biólogos sabem melhor, mas eu chutaria que uma borboleta tem um tempo de vida extremamente curto. Mesmo assim elas voam de uma forma tão saborosa, tão cheia de leveza. Coincidentemente ou não, acabo de ver uma borboleta morrer. Suas asas batiam desesperadamente contra as folhas secas a minha volta fazendo um barulho que me chamou atenção. Parei de escrever pra olhar. Ela era forçada a parar, abruptamente. Alguns segundos depois, há alguns metros dali, reiniciava o barulho, parava de novo. Mais uma vez voltou, a última vez, o belo pássaro de penas da cor do sol poente acaba de engolir o que ainda restava seu corpo.

Eu não entendo nada de borboletas, mas uma vez tive uma experiência incrível. Uma lagarta entrou num quarto, eu a vi percorrer um longo caminho até parar num ponto na parede atrás da porta, por horas a fio. No dia seguinte ela era um casulo esquisito. Mais ou menos uma semana depois o casulo estava vazio e uma borboleta começava a se preparar para voar pela primeira vez. No final do dia ela partiu. Borboletas vivem pouco, mudam de forma, podem a qualquer momento ter a sua cabeça arrancada pelo bico de um pássaro e, mesmo assim, elas voam por aí, dançando, como se fossem eternas e inatingíveis.

Será que um dia nós seremos como elas? Poderemos saborear os momentos de nossa curta vida apreciando o gosto de cada u? Passar devagar pela vida não quer dizer ser calmo ou lerdo demais, quer dizer tentar sentir profundamente o gosto de cada segundo, se azedo ou doce, amargo ou dissabor, salgado ou picante, não importa, o que importa é degustação.

Preciso estudar. Estou com saudades de sentar num gramado só pra pensar, mas agora não dá, quem sabe outra hora, outro dia, com você. Não somos mais crianças, o futuro é muito incerto, pelo menos o suficiente pra não jantarmos tão rápido, só pensando na sobremesa. De repente, daqui a pouco, você vê que nem tem mais sobremesa pra você! Aprecie cada pedaço dessa salada de borboletas que eu cacei pra você. Até breve! Bom apetite!

Max

E aí blz?

Espero que você aproveite bem o feriado. Muito obrigado por me dar aquele sol. Durante a minha prova eu estava cansado, um pouco estressado, daí coloquei a mão no bolso e senti a sensação nova e encorajadora de segurar uma estrela. Dá a sensação de poder fazer tudo, absolutamente tudo desde que eu queira mesmo e me convença da minha Vontade. Foi uma sensação conhecida, mas ao mesmo tempo nova, me lembrou o que você disse sobre o ato de dar e receber ser só uma concretização de algo que já é real desde a intenção. Alguém me perguntou porque eu te dei o meu tempo já que ele me era tão querido, poderia explicar simplesmente lembrando uma frase do SdA: É meu para eu dar a quem quiser, como meu coração. É por isso que eu gosto desta nossa fraternidade misteriosa e surpreendente. Bom, vê se estuda também! Feriado não é só festa não! Rs... Abração!

MX

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Olhos nos olhos

Boa noite! Tudo bem com você? Ainda há pouco ocorreu algo interessante. Estava chegando em casa, com mala numa mão e guarda-chuva na outra. No meio da ampla calçada havia um gato. Eu percebi que ele estava olhando nos meus olhos. Comecei então a fitá-lo. Estava me aproximando cada vez mais. Ele não se movia. Quando parei ao lado dele, ele não esboçou reação, apenas continuou a me olhar. De repente seu olhar fica mais tenso, firme, então ele abaixa a cabeça. Fica olhando para o chão. Eu venho para casa.

Não sei realmente o que aquele gato estava fazendo ali, nem sei porque dei tanta importância ao fato. Posso não saber a cor dos seus olhos, não lembro a de quase ninguém, nem dos meus familiares e melhores amigos, no entanto, se você me pedir para descrever seu olhar eu farei um relato minucioso e verdadeiro como poucos poderiam. Apesar de meu símbolo favorito ser um olho, meu amor não é pelos olhos, mas pelos olhares. A sedução está no olhar. Olhos de gato numa noite escura. Deixe os olhos abertos então todos poderão ver dentro da sua Alma.

Queria que você me fizesse um favor, se puder. Será que você conseguiria o original, em inglês, desses versos:

“Fui para os bosques para viver livremente.

Para sugar todo o néctar da vida,

para aniquilar tudo o que não era vida,

e para quando morrer, não descobrir que não vivi.”

Eles estão no filme “Sociedade dos Poetas Mortos”. Já faz uns bons anos que eu assisti. Se não viu, veja, é um ótimo filme. Foi muito bom relembrar esse texto. Ele é uma das melhores mostras do que é a minha felicidade. Eu tenho aprendido e, devo muito disso a você, me ensinando a aniquilar tudo o que não é vida. E como isso dá trabalho! No entanto basta querer para conseguir. Além disso, qualquer sacrifício ainda é bem melhor do que morrer e descobrir que não se viveu, não é mesmo?

No bosque tem gatos a espreita. Prontos pra nos fitarem com seu olhar de julgamento e censura. Gatos pretos, gatos brancos, gatos com pelos brilhantes e foscos sob a luz do luar. Pelo jogo de olhares me deixo guiar. Eu observo olhares quentes, provocantes, olhares sob a luz do luar antigo. A mesma Lua que você vê nessa noite quente. A Lua que liga olhares distantes por um sorriso. Quarto crescente. Você tem medo de deixar os olhares se encontrarem? Tem medo do que possam ver? Acho que na verdade você tem mais medo do que você possa ver: Verdade. Ora, estar no bosque de olhares é estar no mundo selvagem: descobrir segredos pra poder provar do néctar da vida, vida livre, vida real. Quer tentar? Olhe pra mim... Vê se vive hein! Olha pra viver, vive pra olhar! Ah... Esse seu olhar!

Beijos (de olhos bem abertos),

Max

sábado, 11 de outubro de 2008

Fiat Om.

Olá! Como vai você? Espero que as coisas estejam bem! Bom, estou te escrevendo porque comecei a ouvir um monte de músicas e acabei pensando em você. Daí vieram outras pessoas, lembranças, coisas que os sons me faziam sentir. Em cada nota havia algo diferente, novo e maravilhoso, a bela melodia da vida. Alguns acreditam que a base do Universo está no som, nas vibrações, nas ondas de cordas invisíveis. Seja para hindus ou cristãos a primeira manifestação do Todo veio a partir do som da voz do Criador.

Pra mim a música é uma forma da “Grande Arte”, é um meio de se chegar a essência das coisas, na essência de nós mesmos. Quando eu ouço uma música ela penetra no fundo do meu ser, me faz sentir o que ela tem pra dizer, cada nota é a manifestação de um sentimento vivo dentro de mim. Somos uma grandiosa música, que nunca pára. Você pode imaginar como seria a minha música?

Nasci num único som, a batida leve dum tambor. Minha mãe diz que não chorei logo, mas meu coração estava batendo dentro do peito. Assim começa minha sinfonia, só com um “tum-tum”, devagar, baixinho, sem perspectiva alguma, sem um rompante complexo, sem inúmeros acordes e notas. Eu vim ao mundo quase em silêncio.

As pessoas que nos cercam podem fazer planos sem conta e tentar prever nosso futuro, podem nos dizer como fazer certas coisas e nos obrigar muitas outras, no entanto, a próxima nota é a gente que toca. Somos os músicos da orquestra regida pelo Destino. Ele nos impõe ritmos, nós controlamos a melodia.

De repente eu me vejo aqui, já muito distante daquele quase silêncio. Uma partitura enorme ficou pra trás. Já toquei órgãos de tubo, guitarras elétricas, violinos e violões, um belo sitar indiano, uma bateria ensurdecedora, um piano... Nunca há um compasso de espera. Nossa essência não pára.

E a nossa música se entrelaça, se compõe mais e mais, nossas notas, sozinhas, se unem e formam acordes. É assim com a gente, essa carta é minha música tocando dentro de você. Feche os olhos e ouça. E se um dia nossos acordes se tornam dissonantes, se as vibrações sonoras das nossas músicas estão desarmônicas, o nosso maestro nos expulsa da banda e manda cada um ir tocar no seu canto. É assim, porém você não pode apagar a partitura e minha música segue com você, marcada junto da sua, pra sempre.

Claro que não posso e é até infantil falar sobre isso, mas se pudesse, escreveria lá adiante na minha partitura umas notas agudas, de violino talvez, colocaria um coro de muitas vozes, as palavras cantadas não importam, desde que fossem verdadeiras. Unir-se-iam a eles muitos instrumentos, todos com uma melodia belíssima e agradável, forte em sua suavidade como rugas num rosto infinitamente amado e amador. Então, de um em um, eles iriam calar-se, cada soprano e cada tenor, os alaúdes e as harpas, os pratos e também os violões, cada um pararia, delicadamente. Por fim, restaria um “tum-tum”, não num tambor, como no início, mas tocado com um único dedo no meu amado piano. Eu sorriria e assim, abruptamente, cessaria minha última nota.

Maximiliam

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Sonho vermelho de rosas e vinho

Acabei de acordar com um telefonema do meu pai para tratar assuntos pessoais. Não são nem oito horas da manhã. O fato é que o telefonema interrompeu um sonho. Era um sonho tão marcante que minha primeira reação depois de desligar o telefone foi levantar, num pulo, e escrever essa carta. Sinceramente não sei quem é que vai recebê-la, isso não é importante no momento, no entanto sinto que é importantíssimo que eu escreva logo, enquanto o sonho ainda está queimando um pouco dentro da minha cabeça.

Havia uma festa, num navio, como se fosse um cruzeiro ou algo assim. Alguns amigos e amigas estavam presentes. Não importa quem sejam. Uma amiga tinha uma garrafa de certo “vinho cubano”, uma bebida completamente transparente, como água, numa garrafa com essas duas únicas palavras escritas:

V I N H O

C U B A N O

Só o que lembro é que ela me oferecia e eu dizia “Não, obrigado, não consigo beber nada que não seja vinho tinto”. A garrafa havia sido trazida para dentro do tal cruzeiro. Isso era completamente legal. Só o que não se podia fazer era sair com ela ou guardá-la no bar depois de ter entrado com ela. Ela teria que ser consumida ou simplesmente descartada. Faltava pouco para acabar. Minha amiga (que por sinal não bebe) se desfaz da garrafa.

Cenas aleatórias, coisas de sonho, então, uma discussão. Uma das garotas acaba brava ou magoada com alguém. Todas elas somem. Já era noite. Pelo que percebo iríamos embora logo, o passeio havia acabado. Numa outra parte do tal navio, quiçá em frente aos quartos, alguns garotos estão sentados e atrás deles há roseiras diferentes, caules longos e grossos se estendendo pelo chão, uma única rosa gigantesca em cada ramo. Então eles começam a conversar, sobre as garotas, sobre o que havia “dado errado”.

Não entendo porque, porém começo tentar a cortar as rosas. Algo me diz que queria que uma delas fosse minha. Elas estavam em alta conta com sua dona (sim, elas pertenciam a alguma das garotas). Eram flores raras, lindíssimas, rosas como eu nunca teria oportunidade de ver novamente. Não participava da conversa dos garotos, ficava de um lado para o outro tentando cortar uma rosa. Penso agora que talvez quisesse dá-la a alguma das garotas.

Algo finalmente me chama a atenção na conversa dos amigos. A garota que possuía as rosas queria se desfazer delas, a todo custo. Talvez a lembrança daquele lugar fosse insuportável. Como eram muito caras, um dos garotos ofereceu um tênis que valia seis vezes menos e ela lhe vendeu a flor. Pelo que eles conversavam, cada uma delas deveria custar no mínimo R$300,00. Precisava saber quem era a garota, olho para eles como se os interrogasse. Eles dizem que ela está no quarto ao meu lado. Paro de cortar as rosas. Bato na porta. Ela abre, vê as rosas no chão, fecha a porta sem dizer uma palavra.

“Sabia que era ela” digo eu. Só não entendo porque sabia. Nem entendo porque isso era tão importante para mim. Continuava a tentar cortar a minha rosa. Era extremamente difícil. Os caules eram fortes, a roseira estava profundamente viva, agarrada a vida, agarrada a uma terra que não parecia existir. A tesoura não corta, não corta e eu preciso ir embora. Logo ela vai sair e talvez até ateie fogo às flores. Por quê? Não sei. Quero uma rosa, uma rosa rara! Está quase feito, falta pouco, quase, quase... Logo mais meu telefone tocou. Acordei. Acabou-se o sonho. Havia conseguido minha rosa? Não importa.

Talvez o que sinto nesse momento seja apenas uma grande bobagem. Porque um sonho assim, a princípio tão simples, me marcou tanto? Não consigo entender. Tudo o que gostaria de dizer a você, meu caro destinatário incógnito, é que sinto que há uma rosa agarrada a vida, esperando por uma chance. Essa rosa é rara, é caríssima, é única. Contudo, se minha intuição estiver certa, você a está tentando cortar, por uma bobagem, por algo que eu não sei o que é. Talvez seja orgulho, talvez seja dúvida, talvez seja apenas medo. Meu conselho: não faça isso. Rosas são sagradas. Nenhuma riqueza que possam te oferecer por ela valerá tanto quanto destina-la a alguém que vá amá-la como você ama. A verdade vale mais que tudo.

Carta estranha de se receber, não? Bem, é só isso. Espero que ela chegue no tempo certo, seja você quem for. Saudações!

Maximiliam

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Ser ou não ser não é bem a questão...

Essa carta deve estar lhe chegando às mãos na hora certa. Poderia ter escrito antes, poderia ter escrito depois, mas muitas coisas me influenciaram para que escrevesse agora. Podemos nos separar por um mês, uma semana, talvez até por anos, mas quando nos reencontrarmos seremos, um para o outro, amigos, ouvintes e conselheiros.

Você já leu Shakespeare? Muito embora ele não esteja na minha lista de “grandes sábios”, tenho que admitir que alguns de seus personagens são verdadeiros mestres. Isso não significa que eles sempre digam coisas boas, nem que agem sempre perfeitamente, eles representam humanos e, como tal, falham. “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha sua filosofia” disse Hamlet. Não é no racionalismo da filosofia Humanista de Horácio que Shakespeare antevê sua Verdade, mas na análise do Todo como fruto do equilíbrio entre o conhecido e o oculto.

Você não pode ver agora a finalidade do que está se passando. Talvez não veja nunca, não sei. Mesmo assim, você já percebeu que as mudanças, crises e provações, tudo isso te conduz pela “boa estrada”. Talvez você esteja sofrendo mais do que tenha dito e talvez mais até do que eu possa ter lido no seu olhar. O sofrimento, no entanto, passa. Se nem mesmo coisas maravilhosas como amor podem durar eternamente, é certo que o sofrimento não será para sempre.

Falando em amor (e como é bom falar de amor!), não ligue para o que dizem os racionais, eles não crêem simplesmente porque não desejam amar. Acreditar é possuir. Sei, por nossa amizade, que você acredita muito nisso. Ele pode te provar de vez em quando, te fazer sofrer, mas assim deve ser, precisamos colocar nossa fé a prova para crer mais.

Não se assuste com o sofrimento, com as surpresas, não tenha medo do desconhecido, nem de você. Vêm vindo ventos muito bons por aí, ventos fortes, talvez até uma tempestadezinha pra arrancar você do chão. Eu nem precisava te avisar, você já percebeu isso, só estou dizendo que sim, você deve acreditar, afinal, pela cor das nuvens lá em cima, até eu já notei...

Não espere, viva! Esperar é ficar inerte enquanto o mundo passa. Um sábio me falou outro dia que a felicidade não é uma finalidade que devemos tentar alcançar, mas a estrada eterna pela qual estamos passando.

Até breve! Se quiser conversar, contar, ouvir, me procure, você sabe onde me encontrar, sempre...

Maximiliam

sábado, 4 de outubro de 2008

Carta das muitas lendas das "Lágimas dos Anjos"

A chuva da primavera é uma benção. Ela me faz lembrar. Lembro dum lugar antigo, de coisas que não sei explicar e no entanto, nunca consigo esquecer. O sopro do vento na copa das árvores, o som das gotas de chuva caindo, o cheiro de terra molhada, tudo me faz sentir saudade daquela terra. Sei que você também sente, não pode fingir que não, afinal, já nos encontramos outra vez ali, longe no tempo e no espaço.

De repente, uma sensação de vazio, mas um vazio estranhamente prazeroso, daí vem uma angústia, inexplicavelmente parecida com uma ansiedade benéfica, como o suspense de um primeiro encontro. Então o coração aperta, um arrepio ardente corre pela espinha, fecho os olhos, abro os outros olhos. Estou na beira do mar.

Começo a andar pela praia, é cedo e os barqueiros estão içando as velas para saírem a pescar. Pisar naquelas areias brancas de novo é muito bom. Sentir o vento vindo do mar, o vento batendo no rosto para me receber de volta. Preciso ir para a cidade. Caminho pela antiga estrada de pedras. Pergunto-me quem será que a construiu. Acho que ninguém mais deve se lembrar.

O caminho faz muitas curvas e em vários pontos se encontra com estradas e trilhas menores, vindas do interior do país. Viajantes vão, aos poucos, se juntando a mim. A floresta vai se adensando ao redor e já não se pode mais ouvir os brados dos barqueiros nem tampouco ver a praia. Depois de muita caminhada, eu encontro a fonte na clareira. Bebo um pouco daquela água, o aroma das amoreiras em volta parece adocicá-la. Você se lembra do cheiro das árvores? Parecia haver magia até mesmo ali.

Andando por mais algum tempo a floresta vai novamente abrindo espaço. Chego ao grande arco de pedras que marca a entrada. Sorrio enquanto releio o que está gravado desde tempos imemoriáveis: “A vida é todos os caminhos”. É bom estar de volta.

As pessoas passam, gentilmente sorriem e fazem o sinal de nossa saudação. A cordialidade nos espanta um pouco, não é? Aqui as pessoas já se esqueceram da irmandade do mundo, sentimos falta disso. Na praça, a grande Torre do Olho se eleva, imutável, inatingível, imortal. Talvez ela seja a construção mais antiga depois da biblioteca sagrada, na cidade dos sábios. Na entrada, os centuriões aguardam minha chegada. Pedem-me que suba, o Conselho espera. Depois de subir por todos os andares a escadaria se estreita e chego enfim à porta de madeira na qual o Olho está gravado. Já fazia muito tempo que não ia até aquele lugar.

Uma batida: olho para ver o externo do mundo. Outra batida: vejo o externo do mundo para ver o interior de mim. Fecho os olhos e dou uma última batida: vejo dentro de mim para poder ver dentro do mundo. A porta se abre. Todos me saúdam e logo nos sentamos à mesa de pedra para conversar. O Conselho vê o lado de fora e o lado de dentro do mundo, mas não decide pelo povo que vive no mundo: uma decisão se baseia nas três visões e somente o indivíduo pode ver dentro de si mesmo.

Eles me falam sobre o que vêem. Passamos bastante tempo conversando. Eu mais ouvindo que dizendo. Finalmente eles se levantam. A audiência acabou. Devo tomar minha decisão, mas ela cabe só a mim, não lhes interessa saber o que farei: sou o senhor de meus caminhos. Entretanto, os abraços da despedida me delatam. Todos sorriem e saúdam-me com o grande sinal. A porta se fecha atrás de mim.

Desço as escadas. Encontro um ou outro conhecido. Ando sozinho pela cidade. Bato à porta de amigos e eles me recebem para uma refeição. Mesa farta de pães e bolos de cravo, chá adoçado com mel. Conversamos alegremente de tarde. Despeço-me. Ando ainda mais um pouco pela cidade. Vou a um ponto alto, no norte, para olhar a silhueta da biblioteca, longe, na cidade dos sábios. Suspiro. Preciso ir.

No caminho até o arco de pedra uma leve brisa faz cair uma chuva dourada sobre mim: é primavera e as árvores estão em flor. Você se lembra de como é a cidade na primavera? Salpicada de cores, tanta flor forma tapetes pelas ruas. Na saída da cidade, paro sob o arco e releio o que está escrito do lado de dentro: “Segue em paz por teus caminhos”. Tomo a estrada e o caminho de volta parece mais curto que nunca, logo estarei no cais. Vinda do mar, cai uma chuva fina e a terra exala seu aroma de folha e flor.

Chego na praia no horário certo, o Sol já se põe do lado oposto. Olho para o Ocidente e me viro. Caminho em direção ao barco, alguns outros também irão, inclusive você. Subimos a bordo. Zarpamos. Volto-me para o poente, faço o nosso grande sinal para alguém, qualquer um que vá permanecer, na verdade, aceno para aquela terra que estou deixando. O barco se afasta rápido da costa. Fechamos os olhos, abrimos os outros olhos. Estou de volta. Minha escolha foi feita naquele dia, longe, no tempo e no espaço. Você também se lembra?

Maximiliam