terça-feira, 30 de novembro de 2010

O girar da chave


Algumas horas atrás me despedi de uma amiga. Não nos conhecíamos quando ela veio. Hoje, no entanto, creio conhecê-la o suficiente para afirmar que ela tem uma alma de viajante, de aventureira, uma certa leveza de espírito própria daqueles que estão sempre buscando o novo. Apesar de ter passado poucos meses por aqui e talvez por sentir-se somente de passagem, pois desde o começo já tinha data certa pra ir, ela não conheceu muitas pessoas nem muitos lugares. Ainda assim, como ambos gostamos muito de conversar, compartilhamos muitas coisas em diálogos agradabilíssimos, sempre descontraídos e despropositados.
Posso dizer que ela acompanhou – provavelmente sem entender muito bem o significado – alguns dos momentos mais incríveis que já vivi e compartilhei com ela muitas das minhas histórias, sempre cheias de detalhes. Tudo isso me fez muito bem, me fez mais feliz. Então, hoje a tarde, ajudei a carregar as coisas dela até o carro que a levaria. Um abraço, um desejo de boa sorte e um pedido pra manter contato. O carro saiu. Fiquei no portão por alguns instantes. Entrei, fechei a porta, girei a chave. Sem alarde, sem rodeios, quase que sem ser notada, ela partira.
Numa fração de segundo, aquela em que girava a chave, tive uma de minhas epifanias. Imaginei o que teria feito se ambos tivéssemos um pouco mais de tempo. Fui além e comecei a pensar em quanto todos nós deixamos de fazer por não termos tempo. Deveríamos dar mais atenção àquilo que realmente importa e empregar a maior parte de nosso tempo nessas coisas. Não obstante, isso parece impossível dada a forma como vivemos e o mundo em que estamos inseridos.
Quando fazemos uma escolha, passamos por uma porta e deixamos todas as outras para trás. Se parássemos nessa ação, tudo estaria bem. Nosso grande erro é, antes de seguirmos adiante, girarmos todas as outras chaves, trancando todas as outras portas de possibilidades, tornando nossa escolha um caminho sem volta. Marisa Monte, em uma de minhas canções favoritas, diz “(...) portas e janelas ficam sempre abertas pra sorte entrar (...)”. Nunca havia compreendido essa “sorte” como hoje a compreendo. A “sorte” não é simplesmente o que chamamos de “boa sorte”, o antônimo do azar, sorte é algo muito mais importante, é sina, fado, destino. É essa sorte que abandonamos quando escolhemos por cerrar as portas e as janelas.
O “Vilarejo” descrito na música é o paraíso, lar da abundância, dos sonhos, “lá o tempo espera” e, por isso, tem-se todo o tempo do mundo, decide-se a hora de ir e vir. É essa tranquilidade, que tanta falta nos faz, que nos dá o privilégio de deixar as portas sempre abertas, destrancadas, como possibilidades eternas. Possamos todos nós ser portadores de chaves, mas que as giremos sempre no sentido de abrir e não trancar. Ninguém é livre a portas trancadas.
  Até breve... quando tivermos mais tempo...

Max

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O fio da vida

- para Satie e sua batyan

Outro dia vi uma colcha de retalhos. Cada pequeno pedaço de tecido costurado parecia encaixar-se perfeitamente em seu lugar, mesmo que os motivos das estampas nada tivessem a ver uns com os outros. Achei aquilo muito bonito e, ao perceber minha admiração, a dona da colcha, minha amiga, disse-me que ela havia sido feita pela sua avó. Tenho a impressão de que os povos de origem oriental, como é o caso da família da minha amiga, tem profundo respeito pelos mais velhos, valorizando o que eles dizem como mandamentos de grande sabedoria. Todos esse fatos me encantaram ainda mais e eu passei a refletir sobre as lições de sabedoria contidas na colcha de retalhos.
Imagino uma senhora, com modos simples e feições amáveis. Ela está sentada defronte a um amontoado de pedaços de pano. Seu objetivo é uní-los, um a um, formando um conjunto harmonioso e belo. Nesse momento não há espaço para reflexões em demasia, pois isso acabaria com a leveza e a inocência próprias do acaso. Assim, ela simplesmente mede os comprimentos de alguns retalhos e logo inicia sua obra. Ligando os pequenos pedaços por uma linha contínua, suas mãos hábeis dão forma ao novo a partir daquilo que há pouco eram sobras. Ela já conhece os segredos dos tecidos e, muito embora não saiba o resultado final, ela sorri satisfeita com seu trabalho.
A vida não está pronta diante de nós. Estamos nos deparando constantemente com grandes tapeçarias. Não podemos revestir nossas paredes com elas, mas ainda assim carregaremos parte delas conosco. Nosso grande desafio, assim como o daquela senhora, é unir essas partes, esses retalhos, costurando-os através de uma linha forte que passe por todos eles. Recordei-me das Moiras, as três irmãs mitológicas que teciam os fios do destino dos homens e deuses. Tal era o poder delas que até mesmo Zeus, o senhor do Olímpo, estava submetido à sua obra. Por maior que seja nosso domínio sobre a vida, podem ser entremeados motivos que não gostaríamos que estivessem lá, mas não poderemos rasgá-los ou arrancá-los da colcha, pois o trabalho seria muito degradado.
Retalhos nada mais são que sobras de pano, são as lembranças daquilo que vivemos e que, seja ou não por nossa espontânea vontade, acabamos por incorporar à nossa vida. A colcha, depois de pronta, tem o propósito de ser acolhedora, envolvente, de acalentar nas horas frias ou proteger da aspreza do mundo a nossa volta, se ela não cumpre esse papel, precisamos ter coragem deixá-la de lado e aguentar o frio, até que tenhamos costurado uma nova peça.
Para mim, o mais interessante na colcha é justamente a consequência de não se pensar demais para costurá-la: não há grandes planos. Sabe-se mais ou menos onde se quer chegar, mas não fazemos idéia de como será o conjunto depois de pronto. A senhora que tece a colcha deve ser mesmo sábia, pois continua seu trabalho, sem ligar para essas coisas, sem se preocupar com a complexidade das cores e motivos, ela só tece. Então, quando a questionamos porque sorri enquanto costura, ela permanece em silêncio, calma, olhando para seu trabalho. Vagarosamente ela repousa as mãos sobre o colo, deixando, por alguns instantes, a linha descansar. Como se despertasse, ela ergue os olhos para seu interlocutor, fita-o com ternura, e responde, quase como um sussurro, mas espontânea e alegre: “É que me lembrei de uma coisa engraçada...”

Max
 

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Flor do deserto


Ontem conversava com uma amiga sobre meu novo aniversário. Realmente as mudanças em mim foram tantas e tão profundas que considero, sem dúvida alguma, que renasci para uma vida nova, uma vida mais feliz e mais plena, enfim, uma vida de liberdade. Decidi que meu novo aniversário será no dia 25 de outubro, pois foi nesse dia que, fechando um curioso ciclo, meu grande espelho caiu da parede e com ele, de certa forma, também caiu a imagem que tinha sobre mim mesmo.
Aprendi muito, com muitas pessoas. Escolhi, no dia de hoje, escrever para uma dessas pessoas, a justa homenagem a alguém que, estando presente desde o princípio, pode trazer à minha vida certa luz sem a qual, talvez, não teria conseguido prosseguir. Espero, sinceramente, que o exemplo que ela foi e é, possa, de algum modo, ser tão significativo para outros quanto o é para mim.
Sei que todos temos motivos para chorar, seja por alegrias ou tristezas, pois o mundo está repleto de desventuras. Não obstante, também sei que as lágrimas que rolaram pelo rosto dessa pessoa, ajudaram-na a compreender que não é razoável perdermos tempo precioso nos questionando sobre os porquês dos acontecimentos, mas, muito mais útil do que isso, é vivenciar cada instante com emoção, encarando os desafios e aproveitando cada um dos pequenos prazeres que o simples fato de estarmos vivos nos proporciona.
Hoje sou capaz de me emocionar com a beleza ímpar de qualquer coisa que esteja a minha volta. Isso, ao contrário do que muitos podem pensar, não é uma forma infantil ou imatura de ver a vida, mas acredito que seja sim o modo mais adulto de encarar as coisas: enxergando, com humildade, todas as verdadeiras qualidades que há em cada mínima parte da Criação. Outro dia, ouvi falar de alguns animais com peculiaridades curiosíssimas e me peguei pensando em como é surpreendente que, das mais aparentes adversidades, consigam sugir não apenas a vida, mas também a força e a graça.
Nada nem ninguém foge dos desígnos da Natureza e, assim como plantas lindíssimas podem florescer nos desertos, também nós podemos crescer esplendorosamente em meio às adversidades. Contudo, se pensarmos que com cada lágrima podemos trazer a vida à aridez de um deserto de desespero, se chorarmos um mar, então poderá brotar uma floresta. E essa pessoa cresceu, sempre e cada vez mais, em meio a desertos de dificuldades, cresceu e se desenvolveu tanto que hoje talvez não acredite no quanto consguiu realizar a partir da areia, talvez sequer consiga crer que a grande beleza que surgiu ao seu redor foi semeada pelo seu abnegado sacrifício.
É difícil encontrarmos alguém, hoje em dia, que consiga verdadeiramente amar. As pessoas deturparam de forma rude o amor e o traduziram como um sentimento vil de dependência e até mesmo uma simplória paixão. Amar é muito mais difícil do que se prega, pois implica na real abdicação, no abandono de tudo, inclusive de si mesmo, em função de outro, aceitando, inclusive, as últimas consequências dessa entrega como a dor ou mesmo a morte. Como costumo sempre citar um grande mago do passado “amar é doar-se aos outros”. E essa não é uma doação que deseja algo em troca, não! Essa doação se faz a partir do momento em que sentimos que nada mais nos é necessário além do próprio fato de podermos servir, real e dignamente, servir em Liberdade.
A virtude dos heróis, dos “semideuses”, dos maiores dentre os homens, é viver a todo instante o Amor. Entretanto, houve poucos heróis na história da humanidade, de tal modo que podemos considerar admiráveis aqueles homens que, mesmo sem querer, aprendem a amar verdadeiramente. A pessoa à qual dedico essa carta possui virtudes inúmeras, mas, certamente, nenhuma delas me ensinou mais do que sua capacidade de viver o Amor em Liberdade nas possibilidades de alguém comum, sem “iluminação espiritual” ou poderes fantásticos, mas simplesmente agindo. Sempre com a chance de escolha em suas mãos, teve discernimento e sabedoria e pode aceitar sua própria felicidade e amar o quanto quisesse. Esse é um de meus maiores exemplos e, sinceramente, espero que ele tenha lhes sido tão tocante como o foi em toda a minha vida.
Muito obrigado por estar sempre comigo, meu grande exemplo! Te amo!

Max

(O texto está sendo republicado, pois, na primeira versão postada, por algum motivo, faltou um parágrafo inteiro, parte essencial do mesmo.)

terça-feira, 16 de novembro de 2010

A dúvida no compasso de espera


Nos últimos dias tenho ouvido bastante Mozart. Sua música é muito complexa, não somente para aqueles que já estudaram sua linha melódica e harmonia intrincadas, mas também para os que somente sentem a emoção transbordando de cada acorde. Considero suas sinfonias especialmente belas, pois parecem ter vida própria. Começam misteriosas, como se quisessem nos fazer crer no insondável, nos atraem, como numa armadilha, e caímos em suas teias sedutoras. Assim, como numa de suas sinfonias, em minha mente surge um mistério, uma dúvida. Contraditoriamente aos princípios da racionalidade, as únicas certezas que tenho estão contidas no coração. Pouco a pouco, a dúvida toma conta de cada mínimo canto da mente e transborda à beira da insanidade sentimental.
Então, como numa revelação, não da Verdade, suprema e inalcansável, mas de algo, que a nós, tolos, soa como grandioso, as notas da música de Mozart explodem numa euforia e agonia semelhantes àquelas das paixões mais arrebatadoras. Acabei descobrindo algo que já havia notado, mas em que eu não desejava crer. Estranhos são os caminhos de nossa mente, que nos ilude para que sintamos mais prazer naquilo que, na realidade, nos traria sofrimento. Mesmo assim, mesmo consciente desse fato, a resposta não vem. A resolução depende de muitos fatores e, essencialmente, do futuro. Passo a me torturar, mais e mais, pois desejo saber o que virá e esse desejo tem o único objetivo de me preservar do sofrimento.
O que mais me atrai na música de Mozart é a constante sensação de suspense. Ele conseguiu, em cada uma de suas composições, imbuir um desejo de mais. Os compassos de pausa estão habilidosamente postos, de tal modo que ansiamos por continuar ouvindo tal coisa magnífica. E a dúvida continuou a me angustiar, pois não detenho qualquer meio para fazer findar o suspense. O risco! A vida é sempre permeada por dúvidas inúmeras e nossas escolhas podem nos conduzir à dor ou ao prazer. Os acordes, apressados, exigem que tomemos uma decisão: sim ou não.
Como o som do trovão que  procede o relâmpago, assim segue, previsível a melodia. No entanto, quando menos se espera, uma guinada, não brusca, mas uma transformação, inesperada e, contudo, harmoniosa, transforma as notas graves e pesadas em sons mais agudos e leves: a paz que surge do mais singelo sorriso. Assim surgiu a escolha. Tememos, sim, por aquilo que pode resultar de nossos atos, mas o risco é a constante da vida. Tomei uma decisão.
A música cresce novamente. Geralmente, nesse ponto, ele sabiamente acrescenta a participação de cada um dos instrumentos e algo até então desconhecido, mas vivo e imponente, se levanta das águas do mistério, da paixão e da paz, todas unidas num só mar. Talvez tenha chegado também o tempo de poupar a mim, acima de qualquer outro, para que também eu possa continuar feliz e, quiçá, possa até mesmo compartilhar essa felicidade com aqueles que realmente merecem. Como um turbilhão, um êxtase, assim eu ouço as notas dessa parte da sinfonia, ela é estarrecedora e magnífica, pois traz, do meio da incerteza e do medo, a concretização. Desse modo, esplêndida, harmoniosa e inigualável, termina a música.
Não é mesmo uma bela composição?

Max

domingo, 14 de novembro de 2010

O fim de todos os medos


Contraditoriamente, eu começo escrevendo sobre o fim. Todo final é emocionante: quando terminamos algo em que empreendemos grandes esforços, quando desvendamos um mistério que, há muito, nos intrigava, quando abandonamos o peso de uma obrigação realizada, quando rompemos relações, seja por realmente desejarmos ou por forças maiores do que nós, quando chegamos onde gostaríamos de estar ou quando nossos passos são interrompidos por alguma razão. Tudo isso nos emociona. Podemos ficar tristes, felizes, aliviados ou conformados com o fim, mas é certo que poderemos ver mudanças em nós mesmos em relação àqueles que éramos quando iniciamos a caminhada. Acredito que, quando percorremos uma trilha, há duas grandes recompensas: a primeira são todas as vivências desse percurso e a segunda é, sem sombra de dúvida, as mudanças que se operam em nós durante o trajeto.
Como você deve saber pelo que tem lido nas minhas últimas cartas, eu venci muitas batalhas e encontrei minha realização como fruto da liberdade. Passei a sentir que não conheço ainda uma barreira que, com alguma vontade e esforço, eu não possa transpor. Nas vezes em que não somente o término, mas a escolha de quando irá ocorrer, dependem unicamente de nossa vontade, podemos sentir medo, no entanto, notei que esse medo é despropositado, tendo em vista que, independentes de nossas escolhas, o futuro e suas consequências não podem ser plenamente conhecidos, mas somente imaginados.
Foi com essa idéia em mente que, três dias atrás, eu mesmo finalizei algo que começara há alguns meses, como uma forma de me ajudar a superar minhas crises. Não há nada que possa pagar ou demonstrar a minha mais profunda gratidão às pessoas que me ouviram, que me aconselharam e estiveram presentes durante meu encontro, face a face, com os medos mais profundos de minha alma, e sou grato, ainda mais especialmente àquela voz da qual me despedi há três dias e que talvez nunca mais encontre, mas que gostaria que soubesse que carregarei sempre dentro de mim.
Já há quase dez anos, eu passei a trilhar uma senda e essa senda me conduziu por lugares maravilhosos. No entanto, há poucas semanas, oficializou-se não o fim, mas a mudança de forma dessa jornada, o término de uma fase. Em meio a um período de tantos términos e metamorfoses, ontem, pude reviver um início: fui convidado a falar a um grupo de dezesseis garotos que iniciaria sua própria caminhada na mesma senda que eu percorrera. Isso muito me emocionou, pois pude ver, em cada um deles, tanto aquilo que fui, como aquilo que sou e aquilo que poderei ser.
Observei em seus olhares certa ansiedade e certo receio pelo desconhecido. Poucos dentre eles se conheciam, mas alertei-lhes que em nenhum momento eles estariam sós e que, cada um deles, dali em diante, seria parte de algo muito maior e, por isso, deveriam sempre zelar uns pelos outros e contar uns com os outros. É claro que eles enfrentarão dificuldades, mas, na mesma proporção em que se apresentarem os problemas, surgirão pessoas dispostas a auxiliá-los. Disse-lhes que eles tem muito que aprender, muito que sentir e muito com que se emocionar na estrada que ontem iniciaram.
É incrível poder dizer que, apesar de estarmos vivendo os mesmos dias no tempo, eu e eles estamos inseridos em diferentes momentos: eles ainda se encontram no amanhecer e eu já atingi o meio-dia. Apesar da diferença, notei que sim, sentados naquelas cadeiras enquanto me ouviam, eles representavam tudo aquilo que eu já fui. Também percebi que eles eram muito semelhantes àquilo que sou, pois nenhum de nós conhece o futuro e, por mais planejado que ele esteja, ainda é incerto. Além disso, eles são símbolos do que eu serei: alguém que, a cada instante, iniciará uma jornada.
A vida é um ciclo, ora estamos de fronte ao desconhecido, ora precisamos deixar aquilo que nos é caro. Sempre haverá quem nos ajude e, portanto, o mais sensato é não temer. O medo pode surgir ante o desconhecido e podar nossa liberdade, todavia eu aprendi que para dar cabo dele é necessário apenas aceitar os riscos de dar o próximo passo. Quando eu hesitava avançar, por temer aquilo que poderia encontrar, me privava de experiências, se boas ou ruins, não sei, mas certamente experiências vividas. A ousadia é o fim de todos os medos.
Agradeço a todos vocês por me mostrarem tanto o fim quanto o princípio e por se mostrarem presentes, sempre, em cada um desses momentos! Muito obrigado!
Seu amigo,

Max

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Apegado demais à carne iluminada

Hoje de manhã, enquanto caminhava para a faculdade, o sol ainda não estava tão alto e, provavelmente devido à chuva da última madrugada, a temperatura ainda estava agradável e uma brisa leve soprava. Por mais ou menos quatro ou cinco quadras havia inúmeros pássaros diferentes voando de galho em galho, cavando no chão para procurar comida, catando galhos pra fazer seus ninhos, cantandando diferentes sons. Olhava ao redor e via, nas árvores, as flores do meio da primavera. Algumas poucas pessoas andavam pelas ruas, talvez sem se darem conta do milagre do qual fazem parte, talvez sem sentirem que, a sua volta, tudo era “vida” e que todos estamos ligados a essa “vida”.

Tenho escrito muito sobre a sensação boa que tenho tido e acho que ela se deve à paz que eu alcancei, não vinda “de fora pra dentro”, mas uma paz que emana “de dentro pra fora”, transbordando nas horas mais inesperadas na forma dessa indescritível felicidade. São pequenos milagres, como os que acabo de descrever, que tem me emocionado. Tenho questionado um pouco o valor de certas coisas. Acho que muitas vezes nos apegamos demais a palavras, situações, técnicas, ritos, enfim, tantas coisas às quais acabamos por atribuir valores e que, nós mesmos, transformamos em fórmulas vazias.

Quando cheguei à faculdade, enquanto atravessava a praça no caminho para minha sala de aula, passei por um rapaz falando no celular. De fato não posso dizer que compreendi tudo o que ele dizia e, talvez, o que eu esteja prestes à relatar ouvido assim, como eu ouvi, fora de contexto, tenha um significado diferente daquele que realmente tinha. No entanto, passei o dia refletindo sobre as palavras que tenho certeza de ter ouvido com clareza: “(...) isso é só uma ajudinha (...) muitas pessoas já se iluminaram comendo carne (...)”. Imagino que o diálogo fosse algum tipo de discussão sobre a utilidade “espiritual” de não consumir carne. Confesso: minha primeira reação foi rir. Depois, quando cheguei na aula, isso acabou me soando sério e surpreendente: de que forma, com tanta beleza à sua volta, uma pessoa podia se preocupar com algo do tipo?

Tenho inúmeros amigos e até parentes vegetarianos. Entendo completamente seu ponto de vista e eu mesmo já pensei em parar de consumir carne. Não obstante, não é essa a discussão aqui! Analisando a situação, acabei por notar que também religiosos, acadêmicos, políticos, místicos e, por que não dizer, donas de casa, por vezes passam mais tempo dando atenção a coisas que, apesar de belas, importantes e muitas vezes indispensáveis, não são, efetivamente, a essência, a fonte de nossa “felicidade”.

Você pode não concordar e achar um absurdo tudo o que eu estou dizendo, mas essa é a minha opinião e é a forma como eu resolvi viver. Não pretendo lhe convencer a fazer nada nem mudar seu modo de vida, até porque, há uma grande chance de isso só se aplicar a mim e eu mesmo posso estar tremendamente enganado, porém, já que nunca vou saber a Verdade, prefiro escrever sobre os meus devaneios (como diz meu irmão) e compartilhar com você aquilo que me traz tanto prazer.

A cada dia sinto que sou mais feliz, mas os problemas continuam surgindo, sinto que tenho mais Fé, mas minha religiosidade tem diminuído, percebo que tenho enxergado cada vez mais, mas o meu grau de miopia só está aumentando, acima de tudo, tenho notado que estou cada vez menos convícto e, no entanto, humildemente, acho que estou me tornando mais sábio.

Viva la vida! Um beijo!

Max

"O essencial é invisível aos olhos"
- Saint Exupéry, O Pequeno Príncipe