domingo, 4 de novembro de 2012

Banho de chuva


O juramento assumido não foi jurado se não é vivido. Não há validade na promessa que não tem como prova a própria vida. Cada manhã será testemunha do compromisso de que todo dia é um passo daquele sonho, pois a manhã se abre para que os olhos a vejam, mas os olhos se abrem para ver a manhã. Acordado sonhando. Sonhando acordado. Sonhando que está acordado. A ordem faz diferença, mas já não importa.
Caminhando em direção a passagem, em meio ao jardim que a primavera trouxe. Tapetes de flores coloridas pelo caminho. Cigarras, pássaros, o sol tímido se erguendo no céu. Levando nas mãos aquilo que será absolutamente importante naquele dia. Na mala, leve, vai aquilo que é essencial, mas não necessariamente útil. A garça faz graça na lagoa, em cima do reflexo do sol. É hora de atravessar. A passagem pelo lago leva do jardim para a fantasia, é a toca do coelho da Alice, onde todos são loucos e se julgam mais normais que os outros loucos.
Quantas vezes passei pela passagem? Quantas vezes cruzei o abismo entre mundos? Quantas vezes até agora passei para aquele lado, além do jardim onde eu vivo, e hoje ele é só é um pedaço do caminho para um mundo mais além. Quando a gente vê que há um mundo além do jardim e do país das maravilhas a gente percebe que está mesmo sonhando. O ônibus vazio sai da fantasia e vai em direção ao falso caos rotineiro da cidade, completamente ordenado em sua desordem.
O canto dos pássaros se torna o barulho enervante dos carros, motocicletas e da música dos rebeldes que esqueceram sua revolta. Reparando nos que estão ao redor, se vêem mãos sempre livres e malas muito pesadas. O dia passa, rápido, afinal, sonhos são muito velozes. De volta ao ônibus para a toca do coelho. O céu do entardecer muda rapidamente para uma obscura revolta, é chuva que se aproxima. Já estava prevista, por isso as mãos traziam o guarda-chuva. Traziam. Já não trazem mais. Ele foi esquecido porque não se fez necessário em nenhum outro momento do dia.
Chuva muito forte vira banho de chuva quando não se pode mais adiar a descida do ônibus. Gargalhadas sozinho no caminho de volta, pela passagem do lago, para o jardim onde vivo. Cada gota de chuva é refresco pra alma, é o balde de água gelada que faz dormir quem estava sonhando acordado. Confiante, despreocupado, conhecedor da realidade. A chave de quem está ensopado gira tranquila na porta, não há pressa, não há nada a perder que já não esteja perdido.
Depois, relaxando sentado na poltrona, sozinho, ainda continuava sorrindo por ter compreendido. Os que estão ali, ao alcance da mão, são como guarda-chuvas: parecem muito importantes, mas são utilitários, ficam pelo caminho quando a ausência de necessidade faz esquecer deles. Perdi dezenas de guarda-chuvas pela vida e sempre fiquei chateado com a perda de cada um deles. Mesmo assim, nunca fiquei triste realmente como se tivesse perdido algo de dentro da mala. A mala é leve como o coração de quem deixa o peso inútil para trás e, sem precisar fazer esforço para lembrar ou manter por perto, carrega aqueles que são essenciais.
Max