sábado, 4 de outubro de 2008

Carta das muitas lendas das "Lágimas dos Anjos"

A chuva da primavera é uma benção. Ela me faz lembrar. Lembro dum lugar antigo, de coisas que não sei explicar e no entanto, nunca consigo esquecer. O sopro do vento na copa das árvores, o som das gotas de chuva caindo, o cheiro de terra molhada, tudo me faz sentir saudade daquela terra. Sei que você também sente, não pode fingir que não, afinal, já nos encontramos outra vez ali, longe no tempo e no espaço.

De repente, uma sensação de vazio, mas um vazio estranhamente prazeroso, daí vem uma angústia, inexplicavelmente parecida com uma ansiedade benéfica, como o suspense de um primeiro encontro. Então o coração aperta, um arrepio ardente corre pela espinha, fecho os olhos, abro os outros olhos. Estou na beira do mar.

Começo a andar pela praia, é cedo e os barqueiros estão içando as velas para saírem a pescar. Pisar naquelas areias brancas de novo é muito bom. Sentir o vento vindo do mar, o vento batendo no rosto para me receber de volta. Preciso ir para a cidade. Caminho pela antiga estrada de pedras. Pergunto-me quem será que a construiu. Acho que ninguém mais deve se lembrar.

O caminho faz muitas curvas e em vários pontos se encontra com estradas e trilhas menores, vindas do interior do país. Viajantes vão, aos poucos, se juntando a mim. A floresta vai se adensando ao redor e já não se pode mais ouvir os brados dos barqueiros nem tampouco ver a praia. Depois de muita caminhada, eu encontro a fonte na clareira. Bebo um pouco daquela água, o aroma das amoreiras em volta parece adocicá-la. Você se lembra do cheiro das árvores? Parecia haver magia até mesmo ali.

Andando por mais algum tempo a floresta vai novamente abrindo espaço. Chego ao grande arco de pedras que marca a entrada. Sorrio enquanto releio o que está gravado desde tempos imemoriáveis: “A vida é todos os caminhos”. É bom estar de volta.

As pessoas passam, gentilmente sorriem e fazem o sinal de nossa saudação. A cordialidade nos espanta um pouco, não é? Aqui as pessoas já se esqueceram da irmandade do mundo, sentimos falta disso. Na praça, a grande Torre do Olho se eleva, imutável, inatingível, imortal. Talvez ela seja a construção mais antiga depois da biblioteca sagrada, na cidade dos sábios. Na entrada, os centuriões aguardam minha chegada. Pedem-me que suba, o Conselho espera. Depois de subir por todos os andares a escadaria se estreita e chego enfim à porta de madeira na qual o Olho está gravado. Já fazia muito tempo que não ia até aquele lugar.

Uma batida: olho para ver o externo do mundo. Outra batida: vejo o externo do mundo para ver o interior de mim. Fecho os olhos e dou uma última batida: vejo dentro de mim para poder ver dentro do mundo. A porta se abre. Todos me saúdam e logo nos sentamos à mesa de pedra para conversar. O Conselho vê o lado de fora e o lado de dentro do mundo, mas não decide pelo povo que vive no mundo: uma decisão se baseia nas três visões e somente o indivíduo pode ver dentro de si mesmo.

Eles me falam sobre o que vêem. Passamos bastante tempo conversando. Eu mais ouvindo que dizendo. Finalmente eles se levantam. A audiência acabou. Devo tomar minha decisão, mas ela cabe só a mim, não lhes interessa saber o que farei: sou o senhor de meus caminhos. Entretanto, os abraços da despedida me delatam. Todos sorriem e saúdam-me com o grande sinal. A porta se fecha atrás de mim.

Desço as escadas. Encontro um ou outro conhecido. Ando sozinho pela cidade. Bato à porta de amigos e eles me recebem para uma refeição. Mesa farta de pães e bolos de cravo, chá adoçado com mel. Conversamos alegremente de tarde. Despeço-me. Ando ainda mais um pouco pela cidade. Vou a um ponto alto, no norte, para olhar a silhueta da biblioteca, longe, na cidade dos sábios. Suspiro. Preciso ir.

No caminho até o arco de pedra uma leve brisa faz cair uma chuva dourada sobre mim: é primavera e as árvores estão em flor. Você se lembra de como é a cidade na primavera? Salpicada de cores, tanta flor forma tapetes pelas ruas. Na saída da cidade, paro sob o arco e releio o que está escrito do lado de dentro: “Segue em paz por teus caminhos”. Tomo a estrada e o caminho de volta parece mais curto que nunca, logo estarei no cais. Vinda do mar, cai uma chuva fina e a terra exala seu aroma de folha e flor.

Chego na praia no horário certo, o Sol já se põe do lado oposto. Olho para o Ocidente e me viro. Caminho em direção ao barco, alguns outros também irão, inclusive você. Subimos a bordo. Zarpamos. Volto-me para o poente, faço o nosso grande sinal para alguém, qualquer um que vá permanecer, na verdade, aceno para aquela terra que estou deixando. O barco se afasta rápido da costa. Fechamos os olhos, abrimos os outros olhos. Estou de volta. Minha escolha foi feita naquele dia, longe, no tempo e no espaço. Você também se lembra?

Maximiliam

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