Ontem eu estava sentindo muito calor.
Já passava das dez horas da noite. Abri a geladeira procurando por água, mas
não encontrei nenhuma bebida gelada. Sem pensar muito, enchi uma garrafinha de
água e coloquei no congelador. Depois de fechar a porta pensei “Tenho que
lembrar de tirar antes de ir dormir”. Continuei lendo, pesquisando, assistindo
vídeos na internet. Fui dormir. Acordei e estava sentindo muito calor. Lembrei
da garrafinha. Quando eu a retirei do congelador, achei bonita a forma do bloco
de gelo, com a luz do Sol o atravessando. Fotografei a garrafa, mirando exatamente
contra o Sol.
A água líquida é transparente, nós
conseguimos ver através dela com facilidade. Quando a água está na fase sólida,
lhe chamamos gelo. Gelo é translúcido. Isso significa que a luz, quando o
atravessa, é obrigada a mudar de direção e, por isso, quando olhamos através
dele, não vemos imagens perfeitas, mas um espectro distorcido do que está do
outro lado. Ainda é a mesma substância, mas são fases diferentes, ainda é a
mesma luz, mas percorrendo outros caminhos.
Como se fosse água, nossa vida flui e
muda de fase dependendo da temperatura dos nossos ânimos. Às vezes, acreditamos
que nos tornar como gelo será bom, mas a rigidez e a frieza da razão exacerbada
não deixam passar a luz da realidade. Outras vezes, deixamos nosso coração
guiar, esquentando demais, daí os sentimentos confundem tudo como se fosse
névoa, nuvem, vapor...
Se olharmos um lago de águas puras,
calmas e cristalinas, é possível que consigamos ver o fundo. Conseguiremos
diferenciar os peixes, as plantas, as pedras, talvez até vejamos o nosso
próprio reflexo com alguma nitidez. No rio, de água corrente e agitada, as
formas mudam rápido e nem a velocidade da luz vence a fluidez da vida que
segue. Olhando a água agitada não diferenciamos a planta do peixe, a pedra da
terra, não vemos os detalhes das marcas que a jornada deixou no nosso reflexo.
Somos arrogantes na nossa ciência.
Dizemos que a água, na fase “ambiente” é líquida. Tenho uma amiga que vai se
mudar para uma terra onde a temperatura pode chegar a menos 10°C,
nesse ambiente, a água é sempre sólida. No céu, acima de nossas cabeças, a água
é gasosa e é também ambiente. Quem define qual ambiente é o padrão? Quem define
o que é normal? A neve não é normal nos polos? As nuvens não são normais no
céu?
O ambiente molda a água assim como
molda a nós mesmos. Assumimos que a fluidez da água líquida é sua fase nas
condições “padrão”. Devemos ser fluidos, devemos nos adequar aos recipientes,
tomando a forma de nossas cadeiras no trabalho, nossas camas, nos espaços que
nos são adequados.
Mas somos água! Não necessariamente
líquida, nós somos a substância água! Vamos vagar ou parar, ceder ou resistir,
mudar de fase como manda nosso temperamento. Temos que ocupar nossos espaços da
forma como quisermos e, se quisermos, nos espalharmos deleitosos por aí à fora,
voando como vapor, chovendo como chuva, caindo leves como neve. Somos de fases.
Sempre novos, sempre em mudança. Somos água.