terça-feira, 1 de março de 2016

Janelas

Estamos nos acostumando a olhar somente pelas janelas virtuais: não observamos o mundo a nossa volta com a devida atenção porque, através da janela mágica de nossos computadores, sofremos da ilusão coletiva de que estamos olhando por todas as janelas de uma só vez.
Ontem à noite, olhei pela janela da sala e percebi, pela primeira vez, quão gigantesco é o prédio que se ergue, solitário, há duas quadras daqui. De onde a vista alcança, contei 27 andares. Cada qual com suas varandas, suas charmosas luzes acesas, seus moradores que provavelmente estão olhando os smartphones, lendo notícias em seus tablets, assistindo séries e reportagens pelas suas janelas HD. Cada apartamento, iluminado, à meia luz ou mesmo escurecido, tem pessoas, moradores com histórias individuais. Cada janela, uma história ignorada.
Acordei na madrugada. Olhei as horas no celular: cinco. Percebi uma escuridão além do habitual no quarto. As pequenas luzes dos aparelhos eletrônicos não estavam acesas. Faltava energia elétrica. De repente, um estouro. Um transformador explodiu em algum lugar da redondeza. Está se tornando habitual. Minutos depois, outro estouro. Em seguida, mais um. Voltei a dormir em meio aos sons dos canhões da modernidade.
Até agora a energia não voltou. São quase oito horas e acabo de ouvir um novo estouro. É um sentimento estranho, uma sensação diferente. Parece que, sem poder olhar por nossas janelas mágicas, todas as outras janelas deixam de existir. Um certo torpor, como se ainda não estivesse desperto de fato. Pego papel na gaveta e uma caneta preferida e começo a escrever.
Olho pela janela da sala e o cruzamento não parece tão caótico quanto imaginava com o semáforo desligado, um pouco descoordenados, tal qual dançarino sem ritmo, os carros continuam sua dança. Pais chegam para trazer as crianças a pré-escola em frente. Com suas pequenas mochilas e guarda-chuvas abertos, eles aguardam alguns minutos, mas logo vão embora: não podem acolher as crianças já que não há previsão da volta da energia. O prédio, tão atraente da noite anterior, já sem o glamour das luzes, permanece indiferente à chuva, ao vento ou às preocupações dos moradores.
O bairro repleto de casinhas antigas, cresceu muito nos últimos anos. Fincaram por toda parte torres enormes, em meio às muitas vilas habitadas pelos senhores e senhoras, imigrantes de uma época que já não existe. A rede elétrica não comporta o progresso. Vemos transformadores estourando de tempos em tempos. O trânsito é ruim porque há carros demais, os mercados estão sempre cheios porque há consumidores demais, as escolas não têm vagas porque há alunos demais. Amontoamos pessoas em prédios de 30 andares, como se casas na vertical pudessem suprir todas as necessidades das pessoas por espaço. A estrutura precisa ser verticalizada na mesma proporção das moradias.

Quando foi que isso aconteceu? Acho que estávamos muito ocupados para ver o mundo mudando da nossa própria janela e preferimos ficar olhando dessa “janela de ninguém”. A energia voltou. Melhor ligar logo o computador e passar à limpo esse texto: onde já se viu, hoje em dia, escrever com papel e caneta?

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