Ouvi uma
lenda sobre pequenos barquinhos mágicos correndo pelo rio da vida. Leves,
velozes e sorrateiros, eles são enviados pelo Destino e vem para nos levarem
aonde realmente desejamos ir. Segundo a lenda, cada pessoa só verá passar três
deles e, dado que uma vez em movimento eles nunca podem ser parados, para
conseguir embarcar precisamos estar preparados para saltar quando os
avistarmos. Muito embora eu não acredite na lenda, talvez não haja no mundo
mágica mais verdadeira.
O domingo
extremamente frio da última semana veio acompanhado de um adeus. Não foi o
adeus de alguém que eu tenha conhecido, nem de alguém por quem eu nutria algum
sentimento ou admiração, foi o adeus de um estranho. Mesmo assim, a tristeza ao
meu redor trouxe à tona memórias saudosas daqueles amados que partiram.
Enquanto as nuvens cinzentas e a chuva fina esfriavam mais o dia do lado de
fora, a melancolia fazia gelar o coração: apesar de tudo, temos que continuar. Desapego
é o nome do primeiro barquinho.
Desapego é
feito de gelo, o mesmo gelo da neve das montanhas do inverno. É frio e
melancólico, mas pode tornar qualquer cenário absolutamente fantástico. É um
barco muito pequeno, por isso para poder saltar dentro dele precisamos
abandonar todas as cargas inúteis que tenhamos acumulado pela jornada. O gelo é
efêmero, portanto Desapego não pode nos levar muito longe. Seu destino final
serão os domínios da Solidão e é lá que podemos nos reencontrar com nós mesmos
antes de seguir viagem.
A mudança
nunca é fácil, seja lá para quem for. É impressionante como a gente muitas
vezes se prende a situações desagradáveis e dolorosas só por não ter coragem de
mudar. Pessoas muito queridas têm tomado decisões difíceis nos últimos tempos e
o mundo precisa de pessoas assim. É muito mais fácil ter o conformismo com um
mundo longe do ideal do que sustentar o ideal para mudá-lo. Com um passo de
cada vez se vai longe, como tenho me esforçado para lembrar sempre. Primeiro
arrumar o quarto, depois aprender a dançar e por fim, mudar o mundo. O segundo
barquinho chama-se Ousadia.
Muitas vezes
os homens verão com assombro a passagem do segundo barco, pois a intensidade do
brilho do fogo do qual ele é feito será fascinante e ao mesmo tempo aterradora.
O calor habita nessa embarcação e ela traz todo o conforto assim como as areias
brancas das mais belas praias. Haverá nele a força tanto para destruir como
para moldar os mais diversos obstáculos do caminho tornando o percurso à frente
mais suave. Não há leme que o conduza se o próprio barco e seu comandante não
se tornarem um só e isso torna cada uma de suas viagens uma aventura perigosa. Somente
o ardor de Ousadia conduzirá pelos domínios da Ação e fará da busca pela
felicidade um encontro real.
O terceiro
barquinho é o mais misterioso de todos. Ele não pode ser visto nem ouvido,
apenas sentido. Talvez seja esse o motivo de praticamente ninguém conseguir
saltar sobre ele quando está de passagem: a maior parte das pessoas só tem
olhos pra ver e ouvidos pra ouvir. Esse barquinho não tem nome porque até hoje
nem sábio nem poeta puderam encontrar palavra suficientemente adequada para
descrevê-lo. Dentre os três, ainda quem sem imagem, é o mais belo e ainda que
sem forma, é o mais acolhedor. Cada uma de suas viagens é diferente, pois cada
pessoa é diferente em suas jornadas. Ele pode chegar a qualquer domínio, mas há
uma condição: somente será seu ocupante aquele que conhecer os domínios da
Solidão e da Ação tendo embarcado no Desapego e no Ousadia. Certamente que essa
pode ser a viagem mais interessante de todas.
Ainda assim,
como disse no começo, não acredito na lenda. Não pelo absurdo de um barco de
gelo, outro de fogo e um terceiro barco completamente etéreo. Nem é pelos
domínios míticos através dos quais eles navegam que eu não acredito. Eu não
acredito na lenda simplesmente porque, outro dia mesmo, tendo perdido todos os
outros três, peguei um quarto barquinho. Qual a credibilidade de uma lenda se
eles nem sabem ao certo quantos barquinhos são?
Max
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